domingo, junho 18, 2006

O Titanic
São José Almeida
A ministra que tão enérgica se revela no ataque aos professores não tem uma palavra a dizer sobre o verdadeiro Titanic da educação em Portugal: o ministério que tutela
O que faz correr a ministra da Educação? Há mais de um ano que anuncia e pratica medidas que, garante, são para melhorar o ensino. Mas o que resulta de mais de um ano de choque é o ataque à escola pública e a humilhação da dignidade profissional dos professores. Certamente o ensino português tem problemas. E, se a democratização social plena do ensino, após o 25 de Abril, a sua assunção universal e gratuita, foi um sucesso, é uma realidade que a qualidade do ensino ministrado levanta dúvidas. Só que a estratégia adoptada por Maria de Lurdes Rodrigues deixa muito a desejar quanto aos objectivos. É que, para além de avançar com a ideia catastrofista sobre o estado do ensino público, Maria de Lurdes Rodrigues não prova essa desgraça, não fundamenta as suas afirmações com a divulgação de estudos que demonstrem o que diz. Apenas participa numa espécie de campanha de opinião na qual transparece uma imagem negra do ensino público. (Será que nas escolas privadas a qualidade do ensino é assim tão melhor mesmo?) Campanha que surge em simultâneo com a multiplicação de vozes a defender a liberalização do ensino. Quando já não é só Paulo Portas a defender propostas como o cheque-ensino (medida que o seu paladino, George W. Bush, já teve de abondonar nos EUA), quando o PSD aderiu à defesa do fim da universalidade do ensino público obrigatório e gratuito inscrita na Constituição, quando a partilha do espaço da escola pública com o privado é defendida por figuras tutelares no PS, no que toca ao sector da educação, como Marçal Grilo, a questão coloca-se: será que, com este cenário de fundo, o objectivo de Maria de Lurdes Rodrigues é mesmo a optimização da escola pública? E, sendo esse o objectivo da ministra, será que a estratégia que adoptou cumpre essa finalidade ou antes ajuda, ainda que involuntariamente, a destruir perante a sociedade a imagem da escola, criando o clima que leva a população a considerar que, embora tenha que pagar, é preferível uma escola privada, em que não haja a turbulência que se gerou na escola pública? Por outro lado, há toda uma lógica de acção que deixa muito a desejar, como, por exemplo, o facto de, na entrevista que deu ao PÚBLICO e à Renascença, ter apresentado a questão do insucesso escolar e os dados em relação ao investimento do Estado, às realizações e meios do Ministério da Educação e aos resultados do aproveitamento final, como quem fala dos resultados de uma empresa. Isto, quando já é entregue a parcerias com privados o ensino da Música, do Inglês, do Desporto e da Expressão Dramática, que passaram a matérias extracurriculares. Para mais, quando o ensino movimenta quantias importantes, não se pode ignorar como a sua privatização é apetecível para os investidores privados. É básico que para a escola funcionar é preciso professores e é preciso professores que sejam, como sempre foram, uma imagem de autoridade para os alunos. Além dos pais e muitas vezes sozinhos os professores garantem a formação cívica e social dos alunos, são a imagem da autoridade, a referência do que é o comportamento socialmente aceitável. Ora, se a ministra leva mais de um ano apostada em destruir esta imagem, como poderá a escola funcionar? E a questão é que, mesmo que Maria de Lurdes Rodrigues ache que não é isto que está a fazer, o resultado prático na escola do que tem sido o bombardeamento à dignidade profissional dos professores é só um: a sua desmoralização. E nem é preciso chegar a extremos, como a ideia absurda de pôr os pais a avaliar os alunos, que já causou, em algumas escolas, a situação de alunos ameaçarem professores de que os seus pais os vão chumbar. Já agora, refira-se que a actuação das aristocracias sindicais nada ajuda a dignificar a classe dos professores. A solução não é dizer que está tudo bem. Não está. Muito há a melhorar. Mas não é intelectualmente honesto responsabilizar em primeiro lugar a classe docente pelos problemas do ensino. As causas são múltiplas e de vária ordem. Desde a questão social à heterogeneidade na sala de aula, passando pelas diferenças de aprendizagem, de acordo com o género, assuntos que em Portugal continuam por estudar. Também não há que negar que há maus professores, desleixados, que se estão nas tintas e que até ludibriam o Estado. Como em todas as profissões, há maus profissionais e até vigaristas. Mas assumir como adversário uma classe profissional, sem a qual não há escola, parece no mínimo absurdo. É que, além de declarações gratuitas sobre os maus professores, Maria de Lurdes Rodrigues tem tido toda uma acção dirigida contra os professores, chegando ao ponto de o novo Estatuto da Carreira Docente propor que, em cada escola, apenas um terço do seu corpo docente possa atingir o topo, criando assim professores de primeira e professores de segunda, que não poderão progredir na carreira. Estranhamente, Maria de Lurdes Rodrigues, que tão enérgica se revela no ataque aos professores, não tem uma palavra a dizer sobre o verdadeiro Titanic da educação em Portugal: o ministério que tutela. Isto porque, se as escolas são o desastre que diz no que se refere ao ensino que é ministrado, a responsabilidade não é só dos professores, nem principalmente destes. Há dezenas de departamentos e chefes, que aprovam e dão orientações sem nexo sobre a gestão das escolas. Departamentos que, ano após ano, são os reais mandantes no ensino. Departamento que fazem e aprovam programa e guiões para a ocupação dos tempos livres, assim como regras de gestão, que os professores são obrigados, por ofício, a cumprir. Mas, estranhamente, Maria de Lurdes Rodrigues nada diz sobre o verdadeiro polvo da educação, ou seja, o ministério onde altos funcionários, que ninguém elegeu, têm um poder imenso sobre a educação e as escolas, poder esse conseguido à sombra dos negócios de poder do bloco central de interesses e que lhes garante o direito a pôr e dispor do ensino, quer no governo esteja o PS ou o PSD. Sobre isto Maria de Lurdes Rodrigues nada diz. Quando é lapidar para qualquer um que as escolas não vivem em autogestão. Recebem orientações. E, se o resultado é mau, talvez a responsabilidade principal não seja de quem cumpre orientações, mas de quem as dá. Em vez de centrar o seu discurso e acção na estratégia fácil, mas perigosa para o futuro, de descredibilização dos professores perante a sociedade, talvez fosse bom a ministra olhar para dentro de casa, para os que se passa na 5 de Outubro e na 24 de Julho. Afrontar quem de facto manda e é responsável pelo mau ensino. E, já agora, era seu dever também ajudar a reforçar a autoridades dos professores, porque os professores é que são a referência e sem referência não há escola, pública ou privada.
in O Público edição de17 de Junho de 2006

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