sexta-feira, novembro 18, 2005

Eu hoje faço greve!

Aqui se publica um texto da responsabilidade da colega "Fal. Mans."

Eu hoje faço greve!!!

Eu hoje faço greve, porque:

- vivo num país onde o lema é “dividir para governar”, onde os meios de comunicação são usados para branquear e camuflar a informação;
- vivo num país que divulga dados sobre a faltas dos professores num dia em que este grupo faz greve por melhores condições de trabalho, esquecendo-se de divulgar a taxa de absentismo dos jornalistas, médicos, advogados, deputados, enfermeiros, empregados de limpeza, empregados de balcão, pedreiros, cabeleireiros, etc..;
- vivo num país onde não existem estudos, pelo menos divulgados, sobre as necessidades de formação no mercado de trabalho a longo prazo, permitindo-se a milhares de pessoas licenciarem-se e acalentarem a esperança de, um dia, virem a ser professores, para mais tarde se confrontarem com a falta de vaga;
- vivo num país onde muitos professores são colocados longe de casa e da família, sem ajudas de custo, e depois todas as pessoas se espantam por estes professores faltarem;
- vivo num país onde qualquer pai é “desculpado” por faltar para prestar assistência à família, enquanto um professor é considerado um “baldas”;
- vivo num país onde todos dizem sem qualquer penalização legal que os professores faltam muito, não sabem ensinar, não sabem manter a disciplina, não gostam do que fazem e depois ficam muito espantados quando os alunos não aprendem, não são disciplinados, faltam e abandonam a escola. Se calhar, se os meus educadores me tivessem dito o mesmo quando era criança ou adolescente, também não quereria aprender algo que viesse daqueles “incompetentes”! Felizmente, nunca o fizeram!!!
- vivo num país onde, apesar das carências na educação, se aumentam os alunos por turma;
- vivo num país que abandona os mais frágeis à sua sorte e não cria estruturas para substituir a família quando esta não funciona, remetendo para as escolas o papel que competia a toda a sociedade;
- vivo num país que se demite de todas as responsabilidades sociais, cívicas, pedagógicas e até familiares, responsabilizando os professores e auxiliares de acção educativa por este papel, pois cada vez mais se lê nos meios de comunicação social e se ouve nas conversas informais de café: “Cabe à escola a Educação Sexual, Educação para a Saúde, Prevenção Rodoviária, Prevenção contra os Acidentes ...”
- vivo num país onde se valoriza o ter e desvaloriza o saber;
- vivo num país onde os alunos são desresponsabilizados pelo seu desempenho, cabendo ao professor justificar o insucesso dos seus alunos - por vezes completamente desinteressados - e alterar a sua prática pedagógica;
- vivo num país onde existem prazos para se poder accionar conselhos disciplinares, findos os quais nada se pode fazer, enquanto tribunais, câmaras municipais e empresas de todo o tipo não cumprem prazos;
- vivo num país onde qualquer pessoa pode trabalhar numa outra actividade ou num outro espaço após o seu horário laboral e é considerada como “muito trabalhadora”, enquanto um professor não o pode fazer, nomeadamente dando explicações, pois “não está a investir nos seus alunos” e “está a tirar proveito económico das carências dos alunos”;
- vivo num país que engloba num “ranking das escolas” (não entendo o anglicismo!), realidades tão díspares, procurando agitar a opinião pública, de forma ligeira, superficial e sem qualquer proveito, excepto o de reforçar o sucesso de escolas privadas que chegam a escolher alunos e a convidar os menos ilustres a anular a matrícula e inscrever-se como aluno externo para exame para que a média da escola não baixe;
- vivo num país onde, ao contrário da maior parte dos grupos profissionais, os professores compram do seu bolso os materiais de trabalho e aumentam as despesas familiares em electricidade, tinteiros, papel, internet ao trabalharem em casa;

Eu hoje faço greve, porque:

- trabalho numa escola onde a maior parte dos alunos vive em bairros degradados e é muito carenciada a todos os níveis;
- trabalho numa escola onde a única tábua de salvação para muitas crianças são os professores, psicóloga escolar e auxiliares de acção educativa, fornecendo refeições, livros, materiais escolares, alimentos, vestuário e muita atenção;
- trabalho numa escola onde se sabe que muitos alunos trazem consigo armas brancas (necessárias no bairro) e não as usa na escola, pois sabe que é um espaço com regras e deve ser minimamente respeitado;
- trabalho numa escola onde as crianças entram no quinto ano sem saber ler nem escrever correctamente e com grandes falhas no âmbito da Matemática e, nos exames do nono ano, na disciplina de Língua Portuguesa, alcançam classificações semelhantes à média nacional, apesar da “língua” materna ser o crioulo;
- trabalho num agrupamento de escolas, onde um dos estabelecimentos de ensino do primeiro ciclo funciona numa espécie de contentor das obras adaptado, sem uma biblioteca, nem espaço para os alunos estarem com dignidade (isto na Amadora, perto da “capital do reino”!);
- trabalho num agrupamento de escolas, onde os professores do primeiro ciclo se queixam de que os alunos vão para as aulas mal alimentados, sem agasalhos, com a roupa e eles próprios sujos; queixam-se de que as crianças não conseguem estar concentradas nem sentadas tanto tempo no mesmo lugar, por estarem praticamente entregues a si próprias, no bairro, após as aulas; queixam-se da dificuldade de muitos pais (sobretudo mães) que querem ajudar os seus filhos, mas não conseguem por diversas razões, entre as quais o analfabetismo;
- trabalho numa escola onde sempre existiram actividades de complemento curricular (clubes e desporto escolar) e muitos professores sempre trabalharam para além das horas marcadas no horário, preferindo muito alunos permanecer na escola (espaço seguro e de afecto) do que ir para casa;
- trabalho numa escola onde muitos funcionários e professores pagam do seu bolso os materiais que consideram necessários para a realização de projectos como forma de vencer a inércia e a burocracia;
- trabalho numa escola onde os professores estavam normalmente disponíveis para colaborar em projectos, vindos dum vasto leque de instituições, mas que começam a estar fartos de tanta exigência;







Eu hoje faço greve, porque:

- tirei uma licenciatura e fiz estágio, na Faculdade de Letras, em Línguas e Literaturas Modernas, Variante de Português e Francês e, neste momento, dou aulas como Área de Projecto e Formação Cívica, Língua Portuguesa (8º e 9º) e Francês (8º), para além de ser Directora de Turma, com toda a carga burocrática que isso implica;
- tenho, no meu horário, que cumprir vinte e seis tempos lectivos na escola, para além das inúmeras reuniões por semana/mês, que ainda ninguém se lembrou de contabilizar e divulgar nos meios de comunicação.
- não consigo preparar as aulas com o rigor e qualidade que gostaria, nem consigo corrigir os trabalhos dos meus alunos num curto prazo como é pedagogicamente correcto. Levei sete horas a corrigir o último conjunto de testes. Será que tudo isto é importante? A quem interessa isto?
- trabalho numa escola onde os professores activos e entusiasmados pelo seu trabalho e sobretudo pelos alunos estão a perder a vontade de trabalhar bem, de dar o seu máximo, porque se sentem ofendidos na sua dignidade, não sentem reconhecimento pelo seu trabalho.
- tenho trinta e sete anos e já tenho muitas falhas de memória;
- incomoda-me imenso a instabilidade, as regras que mudam diariamente, as informações que saem a toda a hora, quer vindas do ministério, quer emanadas pelos próprios órgãos da escola, segundo indicações do ministério;
- detesto os níveis de ruído que existem nas escolas;
- sinto-me muito extenuada depois de cinco tempos lectivos, mas tenho que continuar a trabalhar, quer na escola, quer fora;
- quem me dá oportunidade e tempo para reflectir, aprender, ser uma pessoa/professora cada vez mais completa?


Eu hoje faço greve

Porque sou, com muito orgulho, professora!

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