sábado, setembro 23, 2006

BIRREGRADOS

Os nossos emigrantes misturam o português com o francês, por exemplo, e nós achamos graça.
E, entretanto, se estamos falando dum assunto científico ou técnico , e dizemos feedback, em vez de retroacção, ou feeling, em vez de sensação, já não achamos graça.
Até achamos que é prova de elevada cultura(?!).

Pois.
Vacances é que não!

A língua é um conjunto de regras aprendido.
Tal como o comportamento.

Na escola, é regra de sala de aula, para os alunos, o silêncio, excepto se questionados ou autorizados a falar depois do braço no ar, por exemplo.
E a escola propõe-se que todos tenham este comportamento.

Entretanto, não podemos alterar a fala dos nossos emigrantes, na verdade não podemos "desinteriorizá-los" do francês, por exemplo, pelo simples facto de eles necessitarem dele no seu dia a dia, em França.
Eles têm de ser bilingues, por necessidade.

Não lhes basta saber francês, têm de o ter na "ponta da língua"!
E por isso dizem e irão continuar dizendo, “vacances”…. De vez em vez. Salta-lhes!

E os putos do bairro, poderão eles modificar o seu comportamento como a escola lhes exige? Ou precisarão eles de ter como regra o falar de imediato sem espera de tempos para autorização?

Conseguiriam eles alguma vez fazer-se ouvir no bairro, se ficassem à espera que os adultos lhes pedissem a sua opinião?

Na escola o menino não deve agredir o colega.

Se ele o ofendeu deve conversar até chegar a um entendimento.
E a escola procura modificar o comportamento do puto do bairro, neste sentido.

Mas será este comportamento o adequado ao puto do bairro, ou poderia tal comportamento, se ele o adoptasse, provocar-lhe graves consequências psicológicas e até mesmo físicas na sua vida diária no bairro?

O puto do bairro se é injuriado e tenta conversar com o injuriador para chegar a entendimento provavelmente é novamente injuriado e agora com mais violência e se de novo tenta a conversa serena como meio de solução do conflito, a seguir é leva porrada e se não responde à porrada com porrada, o mais certo é levar mais e mais porrada.


No bairro, o comportamento adequado ao puto do bairro, é ser agressivo.
É uma questão de sobrevivência.

(Por isso eu e tu, colega, a todo o custo evitamos passar no dito bairro. Porquê? Porque nem tu nem eu temos os comportamentos adequados à nossa sobrevivência lá. Teríamos de modificar os nossos comportamentos para lá conseguirmos viver.
Se por acaso, passamos perto, de carro, evitamos parar, fechamos as janelas. O nosso comportamento não é adequado ao bairro e nós bem sabemos disso!!!)

Meninos não devem usar canivetes.
Na escola!
Pois não.
Mas é preciso dizer “na escola”!!!

Porque no bairro, pode bem ser ao contrário, se o menino não quiser correr o risco de ser violado pelo Manecas, que todos conhecem mas que por lá continua, como sempre.


É bom que mostre bem que traz consigo a naifa e que não tem medo de a usar se for preciso!

Pois é.
A escola pensa que pode modificar comportamentos inocuamente mas não é bem assim.


Modificar um comportamento adaptativo pode significar a destruição da adaptação conseguida e isso pode traduzir-se no limite, na morte do indivíduo cujo comportamento se alterou e desajustou do meio em que vive.
(É por isso que uma águia ao fim de vários anos em cativeiro, morreria se viesse a ser devolvida ao seu espaço natural – perde competências adaptativas)


Porque a escola, procura retirar comportamentos ao puto, mas não procura retirar o puto do bairro.

Como se gere então o caso, na prática?

Na prática o que de facto acontece é que a escola não modifica comportamento nenhum apenas sobrepõe um comportamento (o da escola) a outro comportamento (o do bairro).


E, portanto, como a cada comportamento corresponde um conjunto de regras, estes putos do bairro, têm, ao contrário dos outros, dois conjuntos de regras comportamentais a usar consoante o local em que se encontram.

São os birregrados.

E também, como os nossos emigrantes que dizem: “Que pena, tenho de me despedir que se acabaram as vacances”,

de vez em qundo estes putos irritam-se e respondem com um pontapé no cu ou um murro nas trombas a outro menino….mas depois, pedem civilizadamente desculpas, aplicando correctamente o novo comportamento que a escola lhes ensinou….

2 comentários:

henrique santos disse...

Bem visto Habacuc. Nós professores temos de ser sensíveis a estas "nuances".

zoltrix disse...

Que grande artigo está aqui!
Escrito de forma tão verdadeira que arrepia!
Quantos dos problemas da Escola não passam de questões sociais de classe, não é verdade?
Com a sua licença vou espalhar este seu escrito pelos amigos e contactos, pois TEM QUE SER LIDO!
...e obrigado!